Aníbal Alcino
serigrafia
42,5x32 cm
150,00€
VIDA E A VOZ DA CIDADE
Era
ali. Exactamente ali, naquele largo enorme que tudo acontecia
Era
ali, o lugar mágico onde a cidade, cheia de vida, nunca adormecia
Era
ali, que se cruzavam os operários da Tabaqueira
De
Villares, da Calandra do Bonfim, da Serração de madeira
Da
fábrica de prata e dos pregos e ranchos de mulherio
Que
aumentavam o caudal e eram o cantar cristalino deste rio
Que,
alimentado por longínquas fontes de sofridas gentes
Faziam
do Campo 24 de Agosto, o Jardim colorido
Por
flores tão diferentes.
Na
madrugada, acordavam as ruas burguesas das redondezas
Com
a mistura deliciosa do pregão brejeiro com sotaque tripeiro
E
a canção ritmada das soletas batendo no trilho do eléctrico.
De
repente havia um brusco travar do guarda-freio
E
saltava do estribo o ardina apregoando e metendo jornais
Nas
caixas do correio.
Olha
o Janeiro, Comércio do Porto
Olha
o Notícias
Ao
domingo à tarde, era a Emilinha que entrava e saía
Da
“Pacense” e do “Jota”
E
ouvia-se então o hino do seu ganha-pão:
Olha
o Norte Desportivo!
Olha
o Norte!
Fala
do Eusébio e do Pedroto
Oh
senhor! Veja se tem trocadinho! Obrigadinho!
Olha
o Norte Desportivo! Olha o “Norte”!
As
galinheiras, ai as galinheiras
As
pontas do lenço traçadas no alto da cabeça presa à rodilha
Pela
mão, com uma cesta de ovos, uma Rosinha, a sua filha
No
braçado, um galo careca pedrês de pescoço vermelho
E
uma galinha de crista romã e patas amarradas com um cordel velho
Os
frangos espreitavam pela rede do cesto que carregava
E
iam-se atropelando enquanto ela ligeira, quase correndo, apregoava:
Frangos
e frangas!
Ovos
galados p’ra chocar!
Oh
riqueza! Ofereça, ofereça pr’a gente se ajeitar
Das
terras pacenses, trazendo um vira dançado e batido
Com
os protectores dos tamancos, vinham as parolas:
Merca
cruzetas
Cadeira
ou bancos, tamancos, colheres de pau!
Ai
Senhor, o negócio está tão mau!
Venha
ver, aqui não há pregos!
É
tudo coladinho. Tudo feito com segureza.
Veja
as pernas desta mesa!
Do
eléctrico, do 16, que passava no Largo do Padrão
Chegava
do mar, um outro cantar, um outro pregão
Olha
a faneca da linha
Sardinha
Biba! Bibinha
Carapau
do nosso mar
Ainda
o trago a saltar
Oh
freguesa! Olhe o meu, tão lindo
Venha-me
estrear.
Era
a voz das peixeiras. Ouradas, coloridas e atrevidas.
E
as farrapeiras de Campanhã, da Sé, das Fontainhas e da Corujeira:
Farrapo
Velho, Papel. Olha a Farrapeira!
Das
Eirinhas e das ilhas da Lomba e de Justino Teixeira
Vinha
a mais castiça e jovem vendedeira
Apregoava
alho-porro, manjerico e erva cidreira no S. João.
É
pró novo, pró velho e pró rapioqueiro
É
pra ter o ano inteiro
Quem
quer alho?!
Olha
o manjerico! Não meta o nariz que ele seca. Passe a mãozinha e cheire
Assim,
filhinho, assim!
E
um raminho de cidreira para fazer um chazinho? Acalma tudo que tem nervos
À
noitinha é uma maravilha! Dá muito descanso! Pões tudo manso!
E
no primeiro domingo de Setembro era a Santa Clara do Bonfim
Com
barracas por Pinto Bessa, António Carneiro e Barros Lima
Vendendo
melancia, cebola nova e Doce da Teixeira.
Olhem
que vermelhinha, doce e sumarenta
Oh
freguesa! Olhe a bela melancia!
Menina
cheire o cu a este melão
É
uma categoria! É de Almeirim!
Doce
como o mel! Acredite em mim…
Cebolas
encabadas! Em trança, ou ao quilo
Vinde
ver gentinha!
Santa
Clara nos dê falinha!
É
pra acabar! É pra acabar
Mas,
nem só as mulheres davam vida à cidade.
Também
os homens de voz roufenha
Entoavam
e davam força a este Hino à Liberdade.
De
boina basca vendia ilusões de porta em porta.
Entrava
e saía na loja do Soleiro e na Leitaria
No
talho da Beatrizinha e na chapelaria
Na
Padaria Industrial e no Sucateiro
Era
o homem da Sorte. Sem sorte na vida. Era o cauteleiro.
É
sorte grande.
É
o treze. Anda à roda hoje!
Quem
não arrisca não petisca!
Olha
a cautela coa sorte! Anda hoje!
De
calças de cotim, remendadas nos joelhos e nos fundilhos
Lenço
tabaqueiro no pescoço para travar o suor
A
bilha ao ombro, coberta de heras para enganar o calor
Vinha
o aguadeiro de Nova Sintra e da Quinta da China
Com
um pequeno púcaro de esmalte vendia água da nascente da mina
Água
fresquinha a dois tostões
O
homem das miudezas, engravatado e de voz adocicada
Passeava
entre a paragem das camionetas e o velho urinol
Segurava
o pequeno tabuleiro preso ao pescoço
Com
a alça de couro e ia anunciando:
Agulhas
grossas e fininhas! Linhas. Fita de nastro… elástico
O
estica e encolhe a dois tostões o metro.
Cordões
pra corpetes
Esticadores
prós colarinhos.
Alfinetes.
Botões. Colchetes!
Em
frente à junta de Bonfim,
Encostado
à velha cabina telefónica
Outra
voz se ouvia:
Graxa.
É o engraxa
Pé
na caixa. Olha o engraxa!
Vamos
à vida. Ouça o meu conselho
Duas
croas e as botas fazem espelho.
Era
o Fortinho engraxador
Homem
pequenino, pouco sacana mas bom bailarino
Sempre
que podia… engatatão e bebedor.
No
Inverno, chegava o castanheiro de sotaque beirão
Vendia
castanhas em cartuxo de jornal ou papel grosso e cinzentão
Onde
trazia embrulhado o toucinho cozido e o naco de pão
Com
um cesto a tiracolo abafado por grossa sarapilheira
Que
guardava e apurava o sabor e o calor das castanhas
Cantava
desta maneira:
Quentes
e boas!
A
dúzia são cinco croas!
Castanhas
quentinhas a escaldar!
De
Santo Ildefonso ou da Travessa das Patas
Chega
uma outra melodia
É
o som da gaita de beiços do funileiro.
Homem
velho, de poucas falas, olhar triste e solteiro
Dá
ao pedal, a roda gira e na pedra de esmeril
Afia
as tesouras das modistas e das chapeleiras
As
facas do talhante e as das peixeiras
Solda
o funil das pipas e as asas de zinco
Enxertadas
nas canecas de porcelana que têm de resistir às pancadas
No
tampo de mármore das velhas mesas das tascas das redondezas.
Ouve-se,
de novo, o bucólico pregão musical
A
Tininha abre a porta e desaperta o avental
Oh
Senhor Oliveira! Já vai, senhor Oliveira?
Espere,
que eu vou já à sua beira
É
só este tachinho… está furado!
Faz-me
tanta falta. Ponha-lhe um pinguinho.
Quando
eu receber a féria há-de levar um fundo novo.
Ai
senhor! Que triste a vida do povo!
Compõe
a boina, pega na padiola e parte
Passa
as costas da mão nos lábios e a música, renascendo,
espalha-se
e lá vai anunciando a sua arte.
Ao
fundo da rua, na esquina da Avenida Camilo
Sentado
num caixote que à noite levava na mão
Estava
o cego com a mulher que cantava enquanto ele tocava acordeão.
Entre
duas canções de sangue, saudade e dor, ouvia-se baixinho:
Pela
alma de quem lá tem, dê uma esmola ao ceguinho!
De
Ermesinde, Valongo, Valbom, S. Cosme ou Jovim
De
pés descalços, alma de luto e voz silenciada
De
porta em porta, ganhando a ceia azeda e suada
Vinham
as lavadeiras, as carrejonas, e as leiteiras
E
eram mulheres, mães, às vezes amantes, mas sempre guerreiras!
Eram
o Sol, o Hino, a Alma e a vida das madrugadas tripeiras.
Neste
cruzamento de ruas da freguesia do Bonfim
Morava
a minha cidade perfumada de maresia e alecrim.
Pulsava
forte o sangue do meu Porto de antigamente.
Ai
como tenho orgulho deste Nobre Povo
Com
quem cresci e me fiz gente.
Maria de Lourdes dos Anjos
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